Com atraso, trago a
primeira postagem da série que havia prometido sobre pesquisas de ponta na área
de direito. Essas pesquisas se caracterizam de um modo geral por serem muito
diferentes de trabalhos doutrinários ou de dogmática jurídica, e por terem
claro viés interdisciplinar, deixando de lado a preocupação sobre se realmente
são ou não “pesquisas jurídicas”. Quando digo que são pesquisas de ponta, quero
dizer que são realizadas nas principais instituições de ensino e pesquisa do
mundo (inclusive no Brasil) como uma aposta do que será o futuro ou como uma tentativa
de colaborar na solução de questões importantes para a sociedade.
Talvez os estudos
doutrinários sempre tenham seu lugar num mundo em que exista a questão sobre a
interpretação jurídica correta, mas, como aponta Richard Posner (já citado aqui
e aqui),
eles estão em declínio há algum tempo e, em algum momento, podem vir a ser
apenas um resíduo de um passado em que ingenuamente se acreditava na autonomia
de uma entidade misteriosa chamada “direito”.
No Brasil, as Escolas
de Direito da Fundação Getúlio Vargas (uma em São Paulo e outra no Rio de
Janeiro) se destacam quando o assunto é pesquisa de ponta em direito, fazendo
uso de suporte interdisciplinar facilitado pelas outras faculdades desta
Fundação. Um exemplo é o projeto “Supremo em Números”,
da Escola de Direito da FGV RJ; ele faz amplo uso de tecnologias de computação
para melhor compreender informações em larga escala junto à produção de dados
empíricos; idealizado pelo professor Pablo Cerdeira em 2010, o projeto surgiu
como uma iniciativa de aliar habilidades jurídicas e informáticas para produzir
dados inéditos sobre o Supremo Tribunal Federal – uma proposta especialmente
relevante no contexto brasileiro atual, no qual o poder judiciário em geral e o
STF em particular tem atuado muito mais do que décadas atrás e em questões que
repercutem pelo país inteiro tanto nos veículos de comunicação quanto na vida
das pessoas: alguns exemplos são as decisões de casos como o da reserva Raposa
Serra do Sol, da Lei de Imprensa, dos Fetos Anencefálicos, da Lei da Ficha
Limpa, das Cotas Raciais, da União Homoafetiva e do Mensalão, que deixam claro
que as decisões judiciais possuem um grande impacto político.
O “Projeto Supremo em
Números” tem como foco de análise de tais decisões uma perspectiva
quantitativa. Ele também serve de modelo e complemento para pesquisas
semelhantes relativas a outras esferas do Judiciário, como o relatório “Justiça
em Números” do Conselho Nacional de Justiça. Isso permite a observação do
comportamento agregado das instituições componentes do poder judiciário,
permitindo inferências a partir de padrões identificáveis em um grande número
de decisões judiciais – padrões que não podem ser identificados em análises
qualitativas de textos ou decisões isoladas. O projeto atenta para dados sobre
andamentos dos processos, sua duração, seus atores, suas origens geográficas,
seu assunto e as regularidades e correlações entre esses e outros elementos.
Esse tipo de estudo
quantitativo apresenta dificuldades específicas, sobretudo porque: (a) os
órgãos de cúpula do poder judiciário brasileiro julgam um número muito alto de
casos por ano, às vezes ultrapassando centenas de milhares, diferentemente da
maioria dos países nos quais esse tipo de estudo é mais desenvolvido. Isso
exige o desenvolvimento de novas e diferentes técnicas de análises, baseadas em
grande volume de dados; (b) muitas vezes os dados dos processos ou não estão
disponíveis ou são muito pouco estruturados, com incongruências que não permitem
uma análise de massa sem prévio trabalho de consolidação. Exemplos de estudos
quantitativos sistemáticos do poder judiciário já são encontradas nos Estados
Unidos, na União Europeia e no México, onde tais iniciativas partem não somente
de atores governamentais, mas também de atores não governamentais, como
universidades, por exemplo.
No Brasil, os bancos de
dados do gênero tendem a ser desenvolvidos de forma ad hoc, para pesquisas específicas. Não há bancos de dados
completos, abrangentes e sistemáticos sobre como vem decidindo o STF desde
1988. Com o objetivo de preencher essa lacuna no Brasil, a FGV está realizando
esse extenso projeto, através da Escola de Direito do Rio de Janeiro e com o
apoio da Escola de Matemática Aplicada. O objetivo do Supremo em Números, em
oposição ao modelo de análise qualitativa mais difundido, é fundamentar
quantitativa e estatisticamente discussões sobre a natureza, a função e o impacto
da atuação do STF na democracia brasileira. O projeto realiza análises a partir
de um banco de dados com cerca de 1,4 milhão de processos, mais de 1 milhão de
decisões, aproximadamente de 15 milhões de andamentos, centenas de milhares de
advogados e mais de 1 milhão de partes, desde 1988 até os dias de hoje.
O projeto “Supremo em
Números” é amplo e interdisciplinar, contando com a participação de juristas,
engenheiros de softwares, programadores e designers, fugindo totalmente das
pesquisas usuais em direito – centradas em análises de casos e da legislação
sob a perspectiva da dogmática jurídica e feitas exclusivamente por juristas.
Porém, esse não é o
único projeto desse tipo na FGV: sob a coordenação de Antônio José Maristrello
Porto, o projeto “O
Superendividamento no Brasil”, que começou em 2014, tem por objetivo
formular uma definição conceitual do superendividado no Brasil, o que orientará
a realização de um levantamento quantitativo sobre o tema, acompanhar, durante
a vigência do projeto, a evolução do superendividamento do consumidor de
crédito brasileiro, realizar estudos, da perspectiva regulatória, das variáveis
identificadas como determinantes para o superendividamento e, por fim, fornecer
informações para a formulação de políticas públicas e regulação de acesso ao
crédito. Esse projeto é desenvolvido por todos os pesquisadores do Centro de
Pesquisas em Direito e Economia da FGV (CPDE) em parceria com pesquisadores da
University of Ilinóis at Urbana-Champaign através do Prof. Robert Lawless.
Mais projetos poderiam
ser citados, mas me limitarei a mencionar que a Escola de Direito da FGV RJ conta
com quatro centros de
pesquisa cujos trabalhos são claramente interdisciplinares sobre temas
fundamentais ao país: o “Centro de Justiça e Sociedade”, o “Centro de
Tecnologia e Sociedade”, o “Centro de Direito e Meio Ambiente”, e o “Centro de
Pesquisa em Direito e Economia”. Como nenhuma outra faculdade brasileira de
direito (de que eu tenha conhecimento) está fazendo, as faculdades de direito
da FGV têm desenvolvido projetos de pesquisas amplos, sistemáticos, e de
importância para o Brasil, com profissionais, estudantes, professores e
pesquisadores de áreas diferentes, e que contam, em alguns casos, com parcerias
internacionais. Nisso a FGV acompanha tendências mundiais que descreverei em
outras postagens dessa série.
Leia a Parte 2 aqui.
Leia a Parte 2 aqui.
Parabéns Ítalo, suas considerações também são "de ponta". Aguardo com ansiedade pelas outras "partes" desta matéria em seu Blog. Nossa preocupação em tirar nossos pesquisadores da mesmice "pseudo doutrinária" com uma mera aparência de "dogmática" gera em nós uma angústia ataráxica no aguardo de mudanças, que na verdade estão chegando.
ResponderExcluirAgradeço o apoio, José Lourenço.
ExcluirDevo trazer a próxima postagem na semana que vem ou depois do São João.
No Brasil, seria possível criar alguns centros de pesquisa de ponta, em direito, em algumas faculdades de direito, tanto públicas quanto privadas, mas isso exige disposição e visão dos trabalhadores no seu quadro (professores e coordenadores, em especial).
Um abraço.